terça-feira, setembro 02, 2008

Rodrigo Emílio e Maurras


«LUGAR DE HONRA A CHARLES MAURRAS,
NO PRONTUÁRIO GERAL DA DEPURAÇÃO.
DA VALIDADE, ACTUALIDADE E VITALIDADE DO SEU PENSAMENTO.»

De dia para dia, mais flagrante tende a revelar-se, e cada vez se afirma e consolida mais e com maior candência — não cessando, assim, de agir como tal, de reproduzir-se em consonância, de operar em conformidade —, a influente actualidade da mensagem incursa, e inscrita ad aeternum, nas estruturas doutrinárias propostas a destino por Charles Maurras, a validade duradoura e a criadora vitalidade dos seus postulados, e dos seu apostolado, a plena vigência do seu magistério, a «rayonnante» lição do seu exemplo.
A sempre palpitante e, contudo, imperturbável, sereníssima permanência, e longevidade, do pensamento maurrasiano, estão desde logo, desde sempre, e ainda agora bem patentes, e bem à vista, na temperatura mental e temperamental das nossas convicções mais acendradas, que o mesmo é dizer: no monarquismo integral e integérrimo que as consigna, enforma e configura, e do qual arranca toda a nossa maneira autocrática e aristocrítica de ser e de estar: somo o que sempre fomos, estamos onde já estávamos e onde sempre estivemos, e haveremos de estar, aqui e agora, e agora e sempre, graças, em grande parte, e em boa e larga medida, à funda e fecunda acção do seu preceptorado, que cedo nos tocou, e talhou, marcando, para todo o sempre — para a vida e para a morte —, a nossa forma de ver, razonar, sazonar, inteligir, interpretar e entender seres, ideias, nómenos, factos e fenómenos.

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Com isto, não se trata, aqui, bem entendido, de endossar e/ou de assacar a segundos, a terceiros, ou a quem quer que seja, a mais pequenina parcela ou fracção de culpa pelo que somos, ideologicamente falando, ou ponta de responsabilidade, de qualquer espécie, por aquilo em que eventualmente nos tornámos.
Por mim, e no que mais directa ou exclusivamente me concerne, já o eu tenho dito, redito, repetido e reiterado, sem folga nem descanso, e até à exaustão: com Mestres, ou sem Eles à ilharga, com Guias ou sem Guias a assistir-me — e independentemente do maior ou menor grau de «magistratura» ou de influência que tenham ou não tenham eles exercido sobre mim —, eu cá seria sempre o fascista que sou, o monárquico que sou, — e monárquico que ainda agora não ratificou a Convenção de Évora-Monte — seria, sim, de toda a maneira, seria eu o fascizante monárquico que sou, que tenho sido, sempre fui e que hei-de ser e permanecer, aqui e agora, e agora e sempre.
Sê-lo-ia em qualquer circunstância. Desde logo, por pendor, inclinação e propensão natural.
Sê-lo-ia, outrossim, por via instintiva, ou por via intuitiva, que mais não seja.
Sê-lo-ia, inclusive — sê-lo-ia, sobretudo — por factores de cariz estrutural e sanguíneo, que se prendem com a medular conformação do meu carácter — marcas e/ou traços de base tipológica, anteriores e superiores a mim, que procedem do puro foro do anímico; elementos de feição psicossomática, que relevam do âmbito e da área do ontológico; dados genéticos, energéticos e sinergéticos, de tónus voltaico e de recorte voluntarista, que me irrigam vasos, veias e artérias, desde a hora da origem, se não mesmo desde as eras pré-natais; componentes elementares genuínas, pois, e de raiz, de que sou portador, e que, impressas, transmitidas, à nascença, a cromossomas e glóbulos, e inscritas, gravadas a fundo nuns e noutros, assim ditaram, determinaram e/ou dictaminaram, logo à partida, todo o quadro ou/e quadrante mental, sentimental, sacramental, temperamental e comportamental de fundo, que me assiste desde o berço e que até à tumba me acompanhará, não havendo, portanto, nesse ponto, nada a fazer.
Monárquico, por princípio, e fascista por conclusão, sê-lo-ia sempre, pois com Mestres ou sem Mestres, com Guias ou sem Eles — por estas todas juntas e por outras.
Só que, na falta ou ausência desses Guias, desses Mestres e preceptores, seria eu, com toda a certeza, um monárquico e um fascista bastante menos esclarecido e ainda menos esclarecedor — ainda menos — do que o que sou. Apenas isso.
Que tal fique bem claro, e claramente declarado et nunc et semper, e de uma vez por todas.
O idearium que cedo abracei — e ao qual tenciono morrer abraçado — por minha conta e risco o abracei.
No fundo, limitei-me a seguir e a explorar o meu próprio veio e/ou filão tendencial e a observar a lição dos maiores e melhores de todos nós.
A única culpa que lhes assiste a eles e efectivamente os melhores ou de se terem a meus olhos perfilado como tal e de os ter a minha mente elegido por melhores. Mas disso não têm eles, no fundo, culpa alguma... Nem eles nem eu. Sempre assim foi: desde que o mundo é mundo que a grandeza das ideias é gerada pela magnitude dos homens que as incarnam e professam, sendo a inversa igualmente verdadeira, do ponto e/ou na medida em que as grandes ideias geram e gerem, por seu turno, os grandes homens, que tendem para elas a bem dizer desde que nascem, por um quase fenómeno de magnetismo.
Não têm mais que saber. E tudo o resto é literatura... (Má literatura, aliás). Ou conversa de chacha, paleio barato... Ou conversa fiada em que não há que fiar...

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Continuando. E refluindo — retrocedendo, sem demora, e rapidamente e em força — a Maurras.
Um que outro ponto de divergência, ou de desfasamento, porventura detectável, ou eventualmente observável, no cotejo do esquema e das perspectivas de fundo, angulações cardiais ou lineamentos básicos, que enorabuena assumimos e adoptámos, sobraçámos e abraçámos por nossa auto-recriação — e que são os nossos, para todo o efeito —, com o ídeo-sistema erigido e subscrito pelo colosso de Martigues («Politique d`abord!», preconizava Maurras, «Poésie d`abord!», contraponho eu; «La France seule!», predicava, de lá, o Sumo-Sacerdote da «Action Française»; «Le Portugal-Empire encore et toujours, et l`Europe en plus!», sustenho eu...), não chegam para beliscar sequer a identidade de opções que interiormente nos une ao fundo, ao cerne, à medula e ao essencial da sua atitude mental, quanto mais para as contraditar ou contrariar, pouco que seja, no quer que seja, seja no que fôr...
Aliás, é dele um dos enunciados aforísticos que mais cedo nos entraram (e ficaram, e que ainda, a esta hora, nos andam) no ouvido; um dos preceitos que mais fundo calaram, pois, no nosso espírito e na nossa mente.
Aludo à frase emblemática — e, tão ou tão pouco lapidar é a verdade elementar que encerra, que quase se diria lapalíssica — administrada por ele à l`égard, — à l`enseigne — ao longo de uma tarde de doutrina, com um naipe de observações empíricas de utilidade pública, e lhe fez, às tantas do campeonato, a bem conhecida admonição: «É preciso, é imperioso, é vital que a fragilidade humana seja socorrida e ampla, largamente compensada pela fortaleza das instituições».
Nem mais — nem menos. A debilidade humana tem toda a precisão e mais alguma, e plena necessidade — necessidade absoluta — de contar, realmente, com instituições fortes, estruturas firmes, inabaláveis como rochas, órgãos, aparelhos e organismos de pedra e cal, que lhe dêem sustentáculo anti-sísmico, digamos, e o suporte, a consistência, a robustez de que carece.
E daí advirá, eventualmente — daí provirá e procederá, até, e em linha recta —, aquela sempre (ou quase sempre) autoritária, normativa, dogmatizante e, quantas vezes, olímpica, régia, soberana, senhorial e transcendente leitura que o curso temporal da existência lhe suscita e, no geral, lhe merece; daí, também, decorrerá, por certo — directamente daí — o igualmente invulgar e invariável «tónus» de virilidade que o majestoso pensador adrega imprimir, por norma, e por sistema, ao exercício mesmo da actividade especulativa — à formulação, conceituação, formalização e produção das suas elaborações, entenda-se — e que, por aí, se transmite, desde logo se comunica, a tôdalas gradações e subtis graduações que esmaltam o trilho da sua paciente jornada reflectiva, cumprida a qual a ars cogitandi de Maurras alcança a graça, finalmente, de dar corpo, alma e rosto, incomparavelmente harmoniosos, à radiosa e irradiante «fortaleza» ídeo-lógica que visara e visionara ele desde a linha de partida — e, alfim, consumada, à prova de contestação; alfim, solevada, em perfeita plenitude de pensamento e de palavra. A saber: no topo ideal da construção por ele alevantada, sobrepairando tudo, e todos, a título verdadeiramente cupular, e fruindo do primado espiritual irretirável que Lhe assiste à partida, por petição de princípio, avulta a Santa Madre Igreja, enquanto «dona, senhora e rainha da Lei dos Mundos», naturalmente associada — e sobrenaturalmente vinculada —, por definição e por tabela, à mais genuína das noções cristãs, à mais lídima delas todas: a noção de cruzada, digo: o militar e militante sentido de cruzada e guerra santa, dos quais a mesma Santa Igreja se volve fonte inspiradora e instigadora, por excelência, e agente propulsor e estimulante, por inerência. «Que ninguém sorria da Cristandade» — adverte, taxativamente, Charles Maurras, em termos que remontam a 1900 e que figuram e fulguram na sua «Enquête sur la Monarchie»; «a Cristandade» — recorda ele, logo de caminho — «fundou, no passado, nada mais nada menos do que os Estados Unidos da Europa. O mundo moderno» — conclui, sem demora, o poderoso e primoroso assertor e politólogo — «não está só atrasado em relação ao Império Romano, mas em ordem, inclusive, à própria Idade Média, visto achar-se infinitamente menos unificado do que à época».
O legado doutrinário de Maurras — monumento, soberbo, de rigor e vigor, de lógica e energia, sem igual nem rival — descerra, assim, ante nós outros, «a nova arca, católica, clássica, hierárquica, humana, onde as ideias não serão mais como palavras ao vento, as instituições engodos fraudulentos, as leis uma impostura pegada, as administrações focos-infecciosos de exacção fiscal ou florestas de enganos, e onde tão-só reviverá aquilo que vale a pena que reviva: em baixo, as repúblicas; no cimo, a Realeza, e, como abóbada de tôdolos espaços: o Papado».

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Onde, porém, o fundibulário e o teoreta mais a fundo conversam com a nossa sensibilidade, e deveras se insinuam, deveras se inscrevem no mais atento, venerador, obrigado e religioso recanto da nossa intimidade, e da nossa audiência ideológica e política, é no domínio, justamente, da abordagem factual da História contemporânea, cujo conturbado processo veio a ter nele um dos seus mais lúcidos e combativos acompanhantes, um dos seus mais corajosos protagonistas.
Detido e pronunciado quando já os anos lhe pesavam — tinha, então, Maurras a provecta idade de 77 anos —, e chamado a confrontar-se, na circunstância, com a eventualidade de uma condenação à morte mais do que provável, mais do que certa, mais do que iminente, em virtude de sobre ele impender a acusação que formalmente o declarava e constituía «coupable d`entente avec l`ennemi» (logo a ele, que toda a vida professara um anti-germanismo impenitente e uma teutonofobia perfeitamente pré-primária!...), encarou a situação sem pestanejar, com toda a impavidez, determinação e sangue-frio, limitando-se a olhá-la de frente e a observar: «A vida, na minha idade, nada representa. Para mim, doze balas ou nenhuma, dá no mesmo; não importa; tanto faz; pouco se me dá.»
Demais, considerava Maurras que, «sendo o pensamento a maior e a mais nobre faculdade do homem, não é nada do outro mundo sofrer por ele o pior dos martírios e morrer, até, em sua defesa, se fôr caso disso.»
O velho, denodado e leonino pensador, que cedo abraçara a causa política como quem abraça um sacerdócio, não temia minimamente a prisão, o fuzilamento ou o mais que lhe estivesse reservado. E, na histórica e estentórea audiência de 28 de Janeiro de 1945, no Tribunal de Lyon, Charles Maurras logrou «desarmar» por completo os seus juízes, procedendo ele próprio ao julgamento dos mesmos, perante o pasmo e a escandalizada incredulidade e estupefacção de todos eles.
Ficou célebre a objurgatória, magnífica, que dirigiu ao Procurador da república nessa inolvidável sessão: «A violência, senhor procurador, não reside, de forma alguma, nas minhas palavras; a violência está, sim, na situação em que nós nos encontramos, e no facto de ocupar o senhor, neste momento, o lugar que, por direito, me é devido e que me pertenceria, de facto e de jure, preencher. A violência, senhor procurador, reside no facto de estardes vós no lugar em que estais e de não ser eu a estar aí, a desempenhar um tal papel!»

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A documentar, igualmente, e de modo assaz eloquente, a impassível e sobreavisada clarividência de Maurras, na percepção, contemplação, análise e diagnose do panorama histórico-político fornecido pelo mundo à passagem do meio do século, aí está, ora nem mais, a viva expressão do seu acrisolado apreço pessoal por Salazar, apego esse traduzido e verbalmente manifestado pelo mesmo Maurras, quase, quase às portas da morte, em mensagem de transmissão oral, de que Henri Massis foi fiel depositário, e se fez portador e intérprete, junto do augusto estadista seu destinatário, aquando de uma viagem efectuada ao nosso país por esses entonces: «Você reafirmará, junto do Premier português» — encomendou e recomendou, ao seu amigo e discípulo, o portentoso polemista — «, a minha devoção de sempre, ia a dizer: o meu grande afecto, quase diria mesmo: a minha ternura, por ter sabido, ele, dar à autoridade, restituir à autoridade, assim é que é, o mais humano dos rostos.»
Já, antes, aliás — muito antes disso —, se orientara e pronunciara, e providenciara ele, no mesmo sentido. De facto, ainda os restos mortais da guerra não teriam começado a esfriar, e já o «Camelot dos camelots», desde o fundo da sua clausura de Clairveaux, onde se achava aferrolhado, em regime de prisão perpétua e onde, de resto, só por acaso, e por um triz, não veio a morrer, se fizer eco da intensa estima — intelectual e afectiva — que votava ao nosso inesquecível Presidente do Conselho, exortando-o da forma memorável que se sabe, com todas as veras da alma — e com o apelativo e celebérrimo brado: «Restez! Tenez!», — e dessa vez já o não fez ele, apenas, por interposto mercúrio, mas directamente e por escrito: por mão própria; não já por vias travessas e, sim, por via epistolar.

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Outro aspecto a reter — e a considerar, sobremaneira — no discurso doutrinário do imortal autor das «Oeuvres Capitales», é, sem sombra de dúvida, e sem favor, o que concerne à axiologia (e apologia) do fenómeno corporativo, sua ideação e caracterização sócio-filosóficas, delimitação geral do mundo do trabalho, inventariação exaustiva de toda a estrutura laboral, e fixação teórica (magistral! e esgotante) dos respectivos — e sucessivos — níveis, escalões e estratos, sendo que as componentes e ordenadas de semelhante universo se organizam e perfilam, chez Maurras, à imagem e semelhança, e exemplo, dos sedimentos proto-elementares conaturais ou colaterais à morfologia e tessitura das chamadas camadas sotopostas — e, portanto, segundo as surpreendentes linhas-mestras do mais puro tratado e geologia social (de geologia sindical, melhor dizendo) e de geografia, também, como veremos: de autêntica geografia — se não mesmo de acabada geometria — societária. Uma nova e inovadora ciência, essa. Que o era — pelo menos, ao tempo. (Que o era e seria...)
Sustenta, a tal respeito, o preclaríssimo fundador do nacionalismo integral: «Admitindo que as nossas uniões de origem, de base, de raiz, tenham tido e mantido, e ainda agora conservem, a sua razão de ser, cumpre completá-las por meio das uniões profissionais. A estas vastas formações horizontais — de patrões, empresários, técnicos, de empregados, funcionários e operários — comparáveis às Zonas de latitude terrestre, aditamos nós formações verticais, a fim de bem — comunicarmos uns com os outros, de molde a melhor podermos coordenar as relações permanentes entre todos, de sorte a regrar e regular as normais alterações de perspectiva que a natureza e objecto das nossas indústrias reclamem: fusos de longitude social varando e atravessando as espessas e estratificadas crôstas e camadas da antipatia e da ignorância recíprocas, tendo em vista a laboração comum e convergente da economia produtiva do país. (...) É preciso associar as forças confluentes (...) pobres e ricos, dirigentes e dirigidos, no corpo e coração da mesma pátria: será a corporação.»
Lê-se — e fica-se abismado, com a limpidez do plasma expressivo e com o magnetismo da exposição. Pasma, assombra, esmaga, a lógica irrefragável do raciocínio. Resultam quase exasperantes o brilhantismo e profundidade de invólucro e conteúdo. Fascina, deslumbra, a meridiana nitidez da observação.
Mas de onde, de onde provém, afinal, esta luminosa visão dos homens e da sua circunstância, autenticada por Maurras, desde sempre et jusqu`au bout? A que oracular sabedoria, a que selecta e que secreta ciência (infusa) demanda referência tamanho esplendor mental?
A isto, talvez — apenas a isto: Maurras formula as ideias a partir da própria fibra dos factos. Sempre, e sem excepção, a partir dela e a partir deles. Daí a monumental segurança, a mineral consistência, que imprime a quanto escreve. É que contra factos, não há, nunca houve, continua, ainda agora, a não haver argumentos.
Moral da história: em matéria de conceituação político-filosófica, ainda hoje ou, sobretudo, hoje, terá fatalmente de ir a Maurras quem, de algum modo, queira entrever «l`avenir de l`intelligence».

Rodrigo Emílio.

(Lisboa, aos 14 de Agosto de 1968 — Casa de São José, em Parada de Gonta, aos 10 de Maio de 1996.).

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