quarta-feira, janeiro 02, 2008

A minha (atrasada) Prenda de Natal



Um dos mais belos poemas de Natal. Ou uma das razões para chamarem a Amândio César o Neo-Realista de Direita.


NATAL


Nasceu!
Numa garagem abandonada, coberta de chapa de zinco,
E num caixote velho de latas de óleo,
Entre desperdícios sujos e usados.


Nossa Senhora e S. José tinham vindo pela estrada
Os pés no asfalto negro, onde circulavam carros de luxo:
Pedir boleia, pediram, mas ninguém os viu ou quis ver,
Ou escutar o gesto...
Iam todos apressados para a ceia da noite,
Desbragada como um conta-quilómetros
E cheia de neblina e de promessas.


Nasceu!


Num caixote velho de latas de óleo,
Entre desperdícios sujos e usados.
O clarão dos holofotes chamou lã os vadios de todas as noites:
Os guarda – nocturnos , os polícias de giro,
Os que não têm cama para dormir,
Os poetas e os fugidos à lei — todos! —
Todos os que naquela e nas outras noites
Não têm para onde ir, nem têm onde comer.
Foi, porém, o clarão dos holofotes gastos que os levou lá:
E viram, sobre os desperdícios sujos, num caixote velho,
O Redentor do mundo,
Aquecido pelos dez cavalos-vapor de um velho "Ford T"
Que, trabalhando, acordava a vida no arrabalde longínquo.


S. José e Nossa Senhora choravam:


TODOS pediam no mundo a ressurreição do Cristo!
E Ele viera, Ele encarnara de novo
Através do ventre puríssimo da Virgem,
Sob a custódia lirial do descendente de David.


Os donos de carros de luxo cortavam o nevoeiro
Comprometidos pelas amantes caras que ficavam para trás;
As camionetas de transporte temeram a polícia das estradas
E os outros todos também não quiseram dar boleia
Ao Filho de Deus!

Foi assim que Nossa Senhora veio num pé a pé cansado
Pela estrada fria e asfaltada
Que ganhara um concurso nacional de arranjo e beleza!


Na cidade onde chegaram pela noite adiante
Todos comiam e bebiam o símbolo dessa noite:
As autoridades locais tinham mesmo dado aos pobres
A esmola de um ceia em cartolina...
Por isso todos estavam ausentes das ruas e dos lugares do costume,
Menos aquele motorista que odiava Deus
E que não tinha mulher, nem filhos
E que por esse motivo estava ali, na praça,
Para atender os fregueses transviados.
Para esse a gruta de Belém não dizia
“Gloria in excelsis Deo” mas “Gloria in excelsis Dollar”!
E tinha a alma carregada de ódio,
Embora o coração fosse bom,
Tão bom
Como se fosse ele próprio o Cordeiro Imolado.


E foi ele que indicou a garagem deserta,
Numa ru suja onde só ilhas humanas
Habitavam, viviam e continuavam.
Foi por isso que Jesus Menino nasceu outra vez entre os homens,
Naquele barracão de lata zincada,
Num caixote de óleo, apodrecido, entre desperdícios
Que aqueceram e afagaram o seu corpo tenro.
Os faróis velhos incendiaram o nevoeiro espesso
E chamaram os vagabundos daquela noite;
Os anjos cantaram as peças enrouquecidas do klaxon
E os cavalos do velho motor cansado encheram de calor
Aquele recanto humano,
Onde todos os homens de boa vontade
Não ajoelharam perante o Dollar.


Os vadios, os vagabundos, os guarda – nocturnos,
Motoristas e guarda – freios dos eléctricos
Atraídos pela luz, pelos cânticos e pelo calor divino
Que irradiavam daquela garagem,
Foram todos em debandada para lá.
E prostraram-se diante do Filho de Deus,
Diante da Segunda Pessoa da Trindade,
Diante da Criança Divina
Igual – no corpo – às pobres, magras e sujas,
Mal vestidas, esquálidas, crianças humanas.
Prostaram-se e choraram
E chorou e rezou até
Aquele motorista que odiava Deus!


E três fugitivos das Nações Ocupadas pela liberdade alheia
Vieram – evadidos dos campos de concentração –
Oferecer as suas feridas, as suas fomes, o seu sangue inocente!


As buzinas dos carros todos
Tocaram a alegria daquela noite sem par...


Só o menino chorou para dentro
Porque sabia que o prenderiam outra vez,
trinta e três anos depois,
Por sedicioso, como revoltado contra a Lei,
Aqui, por não ser do Pacto do Atlântico
Alem, por não estar na Linha Geral do Partido.


Mas os humildes de todo o mundo
Vieram e compreenderam
A mensagem daquela noite sem par.


Braga, Noite de Natal de 1952

AMÂNDIO CÉSAR

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